A Declaração de Direitos de Liberdade Econômica brasileira e as Instituições de Ensino Superior

Pouco depois da comemoração da Independência do Brasil, no dia 20 de setembro de 2019, foi promulgada a Lei nº 13.874/19, autointitulada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que preparou o terreno para o florescimento do livre mercado e exercício dos direitos e garantias econômicas do indivíduo, isto é, o desenvolvimento do capitalismo com menos ingerência estatal, delimitando o poder normatizador e regulador do Estado, alterando diversas normas, especialmente o Código Civil.

Diversos dispositivos da referenciada Lei foram condicionados a regulamentos próprios para a sua realização. Entre eles, o de desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, direitos arrolados no art. 3º, VI, da Declaração, e regulamentados pelo Decreto nº 10.229/2020.

De certo modo, a disposição é a expressão minudenciada e estendida do mote do Estado Liberal, consagrado na Constituição Federal de 88, de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II), ou seja, tudo é livremente permitido, exceto o que não é proibido ou condicionado; no entanto, na prática, adquiriu o sentido inverso: tudo o que não é proibido, é permitido. Infelizmente, a regra tornou-se exceção.

Na regulação e avaliação do Ensino Superior não é diferente. A propósito, um dos setores mais regulados do Brasil. Pelo contrário, o purismo dos órgãos e entidades regulatórias e dos conselhos de classe, bem como o corporativismo e ideologias estacionárias das comissões de avaliação e instâncias recursais, refreiam o progresso da Educação Superior com base em diversas normas e mecanismos obsoletos ou na esteira da obsolescência e escorchantes, considerando-se o cenário internacional, no qual pululam os Massive Open Online CoursesMOOCs -, que disponibilizam cursos de diversos graus totalmente virtuais, das mais variadas e renomadas instituições nacionais e estrangeiras, além dos cursos de graduação e pós-graduação ofertados por IES credenciadas e sediadas no estrangeiro dirigidas à brasileiros, especialmente.

Além disso, houve um boom no EaD, com a flexibilização das regras[1] e maior procura por parte do mercado pelos cursos nessa modalidade[2], e teve um crescimento muito além do ensino presencial em 2018[3], o qual será superado até 2023[4], ao passo que o relaxamento de horários, lugares e a verdadeira guerra entre as IES que joga o ticket médio a preço de banana, torna-a mais atrativa aos candidatos.

Inobstante isso, pode-se citar a dificuldade de autorização dos cursos 100% EaD ou mesmo com práticas presenciais, principalmente dos cursos regulares e mais procurados tradicionalmente, como o de Direito, Odontologia, Gastronomia, Enfermagem, Medicina Veterinária, Engenharia Civil, que não só encontram resistência do MEC/INEP, como dos conselhos de classe dos respectivos cursos, que já fazem parte consultivamente do processo regulatório em alguns cursos, como o de Direito.

Prova disso, é o levante dos conselhos de classe contra os egressos dos cursos EaD, negando-lhes o credenciamento profissional nos quadros de suas guildas[5], totalmente ilegal e já sub judice[6], haja vista que exorbita o poder classista a normatização de questões educacionais e de qualidade da educação, sendo seus atos nesse campo meramente consultivos e orientadores.

Há, ainda, problemas em autorizar cursos experimentais e inovadores, como o de Gestão de Serviços Notariais e Jurídicos, que daria ao egresso a possibilidade de ser paralegal, persona non grata da OAB, que já tenta inibir a autorização de novos cursos/vagas de Direito[7].

E isso não é só: mesmo os cursos tradicionais podem, agora, ofertar até 40% EaD[8] – anteriormente, 20%[9] -, exceto nos cursos que especifica. Considerados o futuro da educação, a EaD, os cursos semipresenciais e híbridos ou de metodologias híbridas, que já contam com laboratórios totalmente virtuais e interativos, ainda sofrem preconceitos com a safra de educadores mais atávicos que compõe as comissões de avaliação e mal avaliam cursos com as mesmas estruturas do mesmo curso presencial bem avaliado, ou as fileiras dos reguladores e indeferem ou relegam ao esquecimento os protocolos dos cursos nessas modalidades, quando não são indeferidos.

A despeito disso, as novas metodologias mais ativas, efetivas e acessíveis, e. g., as salas invertidas, o b-learning, peer-to-peer, machine learning, design thinking etc invadem as salas de aulas e os AVAs, os laboratórios físicos e virtuais, ambientando uma educação mais estimulante e de maior participação e provocação do discente, numa realidade aumentada.

Apesar de tais modalidades serem normativamente previstas e asseguradas, e fugirem à normalidade do atraso, como as citadas, na prática, não vêm à luz, seja por questões técnicas do sistema, seja pelo conservadorismo dos Conselhos ou dos reguladores e suas comissões, ou mesmo pelas diretrizes e orientações acadêmicas oficiais e vinculantes.

Contra isso, exsurgiu o Decreto 10.229, de 5 de fevereiro de 2020, que regulamenta o direito de desenvolver, executar, operar ou comercializar produto ou serviço em desacordo com a norma desatualizada de que trata o supracitado inciso VI do caput do art. da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente. Aplaina, indiretamente, a auto/semirregulação pretendida pelo MEC para o setor.

Pela dicção do Decreto, pode-se desenvolver, executar, operar ou comercializar cursos, programas acadêmicos técnicos, tecnológicos, de bacharelado, licenciatura, extensão, iniciação científica, pós lato e strictu sensu que, por decretos, resoluções, portarias, pareceres e demais normas infralegais, diante do desenvolvimento tecnológico, sejam novidades, ou que as normas internacionais técnicas sejam atuais em relação à caducidade da norma interna que os regulamentem. Isso encontra ressonância no SINAES e nos próprios instrumentos de avaliação, que requerem novidades, inovações de seus objetos para a obtenção de conceitos 5.

Consoante o Decreto 10.229/2020, porém, há dois casos distintos para que isso ocorra: (art. 3º, I) se houver restrição integral por norma infralegal nacional, o interessado poderá questionar a norma, requerendo ao órgão/entidade competente, informando qual norma está desatualizada e qual tem sido utilizada internacionalmente, demonstrando-se, no cotejamento entre ambas, a conveniência e oportunidade de utilização dessa última, a qual deve ser de autoria das entidades internacionais taxativa e inicialmente previstas no parágrafo único do art. 6º, do mencionado Decreto. O procedimento está do art. 4º ao 8º. Às suas expensas e risco, nas hipóteses de cabimento do art 8º, poderá a IES utilizar a norma internacional em detrimento da nacional que reputa desatualizada para embasar a exploração do serviço/produto em tela.

Por outro lado, (art. 3º, II) se inexistir restrição em ato normativo infralegal, a administração pública, e aqui entende-se como tal, na eloquência do art. 2º, administração pública direta, autárquica e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, respeitará o pleno exercício dos direitos dedesenvolver, executar, operar ou comercializar produto ou serviço inovador. Havendo dúvida sobre essa possibilidade do inciso II, do art. 3º do Decreto, interpretar-se-á a norma em favor do interessado de boa-fé, o que ameniza a imperatividade do interesse público sobre o privado quando, nesse caso, não é possível vislumbrar qualquer conflito entre um e outro, porque o interessado estará, por sua conta e risco, em busca da mobilidade social experimentadas em outros lugares.

Em conclusão, vale lembrar, contudo, que estas disposições não se aplicam à lei em sentido estrito, mas somente a normas infralegais, como as expedidas pelo MEC/INEP e suas Secretarias (SERES, Sesu), Diretorias, Coordenações e Comissões Técnicas, e que não se caracteriza como ato público de liberação da atividade econômica (!)[10], isto é, ainda será necessária os credenciamentos institucionais, a autorização e demais atos regulatórios dos cursos/programas/projetos pelos procedimentos prescritos e perante os órgãos/entidades competentes, não podendo, não obstante, estes impedirem que as inovações comprovadamente exitosas, trazidas e praticadas pela comunidade internacional, quer seja pelo desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, quer seja por força de normas técnicas mais atuais daqueles entes internacionais listados no parágrafo único, do art. 6º; além disso, nas palavras do legislador, art. 3º, X, da Lei que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, a IES tem “X – […] a garantia de que, nas solicitações de atos públicos de liberação da atividade econômica que se sujeitam ao disposto nesta Lei, apresentados todos os elementos necessários à instrução do processo, o particular será cientificado expressa e imediatamente do prazo máximo estipulado para a análise de seu pedido e de que, transcorrido o prazo fixado, o silêncio da autoridade competente importará aprovação tácita para todos os efeitos, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei”.

O Decreto nº 10.229/2020 vigorará a partir de 6 de abril desse ano.


  1. Portaria Normativa republicada nº 11/2017.
  2. Aumenta procura por curso superior EaD no Brasil. Metrópoles, 18 ago. 2019. Disponível em: < https://www.metropoles.com/conteudo-especial/aumenta-procura-por-curso-superior-ead-no-brasil >. Acesso em: 06 fev. 2020.
  3. Ensino a distância triplica e presencial tem menos alunos. R7, 20 set. 2019. Disponível em: < https://noticias.r7.com/educacao/ensinoadistancia-triplicaepresencial-tem-menos-alunos-20092019 > Acesso em: 06 fev. 2020.
  4. FERREIRA, Júlia. Em 2023 as instituições privadas terão mais alunos no ensino à distância que no presencial, indica pesquisa da ABMES. Esab, 26 maio 2019. Disponível em: < https://www.esab.edu.br/em-2023-as-instituicoes-privadas-terao-mais-alunos-no-ensinoadistancia-que-no-presencial-indica-pesquisa-da-abmes/ > Acesso em: 06 fev. 2020.
  5. CORDEIRO, Thiago. Conselhos barram alunos de EAD. Preocupação com qualidade ou reserva de mercado? Gazeta do Povo, 23 abr. 2019. Disponível em: < https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/conselhos-barram-alunos-de-ead-preocupacao-com-qualidade-ou-reserva-de-mercado/ > Acesso em: 06 fev. 2020.
  6. MARTINEZ-VARGAS, Ivan. Entidades de Educação Superior Processam Conselhos que Vetam Ead. Folha de S. Paulo, 19 abr. 2019. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/entidades-de-educacao-superior-processam-conselhos-que-vetam-ead.shtml > Acesso em: 06 fev. 2020.
  7. OAB realiza pedido para suspender novos cursos de Direito por cinco anos. NE10, 16 ago. 2019. Disponível em: < https://tvjornal.ne10.uol.com.br/noticias/2019/08/16/oab-realiza-pedido-para-suspender-novos-cursos-de-direito-por-cinco-anos-174638 > Acesso em: 06 fev. 2020.
  8. Portaria MEC nº 2.117, de 6 de dezembro de 2019.
  9. Portaria MEC nº 1.428, de 28 de dezembro de 2018.
  10. Lei nº 13.874, art. , § 6º: “Para fins do disposto nesta Lei, consideram-se atos públicos de liberação a licença, a autorização, a concessão, a inscrição, a permissão, o alvará, o cadastro, o credenciamento, o estudo, o plano, o registro e os demais atos exigidos, sob qualquer denominação, por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição para o exercício de atividade econômica, inclusive o início, a continuação e o fim para a instalação, a construção, a operação, a produção, o funcionamento, o uso, o exercício ou a realização, no âmbito público ou privado, de atividade, serviço, estabelecimento, profissão, instalação, operação, produto, equipamento, veículo, edificação e outros”.

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